Editorial: arte, racismo, pandemia e cloroquina

Por Karla Paiva

Desde o início dessa pandemia, criativamente, as coisas não começaram muito bem… Meus pais estão no principal grupo de risco e isso me deixou completamente atônita. Mas com o passar das semanas fui me acalmando, não podia viver mais tempo na rotina de stress e ansiedade, estava adoecendo… Para quem não sabe ainda, meu marido é a grande parceria na Sua Maquete (fez nosso site, auxilia nos orçamentos e outras burocracias, às vezes até faz maquete também) e se eu sou preocupada e brava, pode-se dizer que ele é o oposto disso. Sempre calmo, me instigou a renovarmos o site que estava desatualizado com as novas tecnologias e nessa nossa fase, começou um movimento nas redes sociais, várias lives acontecendo e eu inesperadamente recebi o convite da Adriana Franco, Jornalista de São Paulo para falar sobre fotografia, que é meu hobby, depois veio a live com a Revista Design de Interiores Brasil, seguido de algumas aulas/palestras para alunos de universidades na Paraíba. E nesse movimento, a máquina da criatividade começou lentamente a girar… 

Arte e o atual contexto

Comecei a buscar uma ligação entre a minha arte e o contexto atual no Brasil e no mundo… sobre temas que eu gostaria de abordar e nesse meio tempo, comecei a ver televisão e acompanhar as redes sociais com um outro olhar…. Na verdade desde que vim  para o Rio, ouvi muitas narrativas tristes, histórias de pessoas que perderam a vida por serem simplesmente o que eram, negras. Ao mesmo tempo, percebi uma força vinda dessas pessoas e confesso que em João Pessoa passei a sentir que existe uma gigantesca apatia por parte de muita gente que conheço, muito mais do que aqui no Rio, com certeza. Não quero excluir aqui nenhuma outra luta, nenhum grupo ou pessoas que realizam papéis importantes (mesmo que pequenos, são importantes), mas que eu não conheço, pois sou categoricamente uma iniciante nesse exercício de olhar para “dentro” e olhar para “fora”, e não tem como conhecer tudo e todos…. Inclusive quando falo na apatia pessoense, me incluo. Principalmente por ter sofrido ao decidir que seria artista (por um caminho mais “fácil”, com as maquetes para construção civil) numa cidade que culturalmente estava longe de ser um bom lugar para tal.

Mas finalmente chegando ao objeto principal deste texto, esta maquete é uma busca em trazer algo novo para falar de coisas antigas. Cansada de maquetes “perfeitas”, limpas e novas, eu queria enveredar por novas técnicas, novos retratos do que era pra mim a comunicação em miniatura. Eu não queria mais explicar um projeto, eu não queria mais o mundo perfeito e limpo, achei um mundo real, perto e longe, faço parte de uma pequena parcela privilegiada e talvez por isso eu também quisesse no fundo, trazer um pouco de questionamento a todas as pessoas que estão nessa apatia velada, que parece que não existe, mas ela está dentro de nós. Tento me questionar diariamente sobre tudo que vejo e escuto e FALO! Qual sentido as coisas têm para mim e por quê, mas também queria me posicionar e deixar claro que não passarão por mim sem resposta.

E o tema?

O ‘não falar’ pesa, custa caro, custa  a vida de tantos negros neste e em outros países. Quando comecei a pensar sobre a arte que faria, como faria, eu não tinha certeza de nada, eu só sabia que eu queria fazer algo além do que eu já me esforço diariamente para combater o preconceito. Paralelo a isso vieram os casos do João Pedro, que me abalou bastante, além de tantos outros que já aconteceram…. E quando aconteceu o caso do George Floyd, nos Estados Unidos, gerou uma estranha comoção brasileira… e isso só me instigou ainda mais a continuar produzindo o meu trabalho que a esta altura, já estava bem encaminhado.

Já tinha pesquisado na internet e com amigos sobre a lembrança de algum cartaz marcante que remetesse a essas questões (já que estamos sem poder sair de casa) e o João Seixas, nosso amigo, me trouxe algo super valioso que eu já conto aqui (risos). Em 2019, ele nos levou na famosa Pedra do Sal, tombada como patrimônio histórico e religioso. Lá acontece às segundas-feiras uma tradicional roda de samba, gratuita, aberta ao público e que sempre atrai muitos turistas. A experiência que tive neste lugar foi impactante e a sensação era de estar com meu povo, um espaço de negros, para negros. A história deste local é pautada na resistência dos negros em se manterem vivos, unidos e fortes! Não é à toa que meu amigo automaticamente lembrou-me de um stencil que está espalhado pelas ruas dessa região…. “Vende-se carne negra / Tel:190”

O nascimento da maquete

Com isso meu trabalho começou a ganhar densidade… E falando em densidade, eu tive o privilégio de conhecer o artista Raimundo Rodriguez em uma das produções da Rede Globo, que cria stencil de personalidades importantes… e me interessei em reproduzir em escala reduzida um de Machado de Assis, que é belíssimo, mas para minha surpresa, quando conversamos, ele me apresentou e sugeriu o stencil que acabara de fazer da garotinha Wynta-Amor, que participava de uma marcha em Merrick, no estado de Nova York, contra a brutalidade policial, depois da morte de George Floyd.

O local que a maquete retrata não existe e está por todos os lugares ao mesmo tempo. Saí buscando na memória cantos da cidade que fingem esquecer mas que “gritam” na nossa cara… “Pedem” socorro, mas o Estado dá de ombros.

O muro velho e sujo, o bueiro enferrujado e entupido, uma lixeira abarrotada de remédios, que neste caso são caixas de cloroquina, que esse mesmo Estado insiste em empurrar goela abaixo da população, mesmos sem comprovação nenhuma de eficácia, buscando uma solução mágica para nos salvar de uma situação pandêmica, desprezando todo o esforço da comunidade científica mundial, e pior ainda, insistindo em trocar vidas humanas pelo milagre econômico que o “ajudaria” a manter-se no poder. Esse é o mesmo governo que tenta censurar a arte e utiliza simbologia fascista em atos inconstitucionais.

E você nisso tudo?

A sociedade, agora, parece acordar de um sonho, da busca por um mito, perdida neste conceito, já que mitos, por definição, não existem. Será mesmo que despertaram ou ainda estão procurando apenas por mais um salvador da pátria? Reflita

Pesamos muito sobre criar esta obra e este texto, somos uma empresa, sobrevivemos com serviços prestados aos clientes, clientes estes que possuem posicionamentos políticos diversos e que podem nos boicotar, mas esse risco é irrisório comparado com minha vontade de expressar o turbilhão de sentimentos em meio a esse caos. Se você está do lado de cá dessa luta, sinta-se abraçado, mas se ainda vibra com lives sugerindo invasões em hospitais, declarações lacradoras no estilo “e daí?”, sinta-se à vontade para continuar conosco ou procurar outra empresa alinhada com o que você preza, saiba que é assim que pensamos e sempre pensaremos.

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10 Replies to “Editorial: arte, racismo, pandemia e cloroquina”

  1. Eny Hertz Bittencourt says:

    Excelente editorial!!
    Orgulhosa de ser sua amiga!

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    1. Carlos Cunha says:

      Muiiiiiito, muiiito bom Karla!
      O texto, as idéias, a arte, o envolvimento emocional, a entrega.
      Ajuda-nos a seguir em frente nesses momentos desafiadores que vivemos.
      Siga em frente, pois o caminho é este!

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      1. Ivan Pedrosa says:

        “Vende-se carne negra” é horrível exatamente por representar uma realidade. E o país está sendo mergulhado nesta e outras realidades igualmente hediondas. Muito importante que pessoas se pronunciem e atuem na direção contrária ao obscurantismo e falta de solidariedade.

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        1. Karla Paiva says:

          Oi Ivan, que maravilhoso saber que tem tanta gente com pensamento parecido, buscando olhar o próximo, reconhecer e corrigir erros passados. Realmente é uma frase que ecoa na mente mas que talvez , só assim, ela chegue a outras camadas sociais e a gente consiga gradativamente ser parte dessa mudança. Muito obrigada por ler o texto, por nos acompanhar! Isso me dá muita motivação! Espero que fique bem! Abraço!

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      2. Karla Paiva says:

        Que bom ler isto, Carlos! É muito fortalecedor saber que é um caminho longo, mas que não estou sozinha! E isso me traz ainda mais esperança que é a base do meu caminhar. Muito obrigada! Abração!

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    2. Karla Paiva says:

      Obrigada, Eny! E eu de ser sua amiga! =)
      Que possamos continuar caminhando e aprendendo! Super beijo!

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  2. Kleber Luquini says:

    Coragem não é ausência de medo; o medo emudece, a coragem se sobrepõe e vence.
    Parabéns pelo artigo, pelo posicionamento e pela coragem.
    Sou um simples hobista de final de semana que sigo entre outros o suamaquete.
    Grande abraço.

    luquiniartes

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    1. Karla Paiva says:

      Aaahhh Kleber…. muito obrigada! às penso que não temos outra opção a não ser avançar, não é mesmo? Mas com certeza não é fácil se posicionar nestes tempos, mas artista nasce com uma missão, talvez algumas… Questionar, tocar um vazio humano talvez, escancarar verdades e como agora, “nunca” fomos tão essenciais… Me encoraja saber que não estou sozinha. Muito obrigada por ler, nos seguir e apoiar nosso posicionamento, que é simplesmente a favor da igualdade. Grande abraço!

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      1. Alexander says:

        Muito interessante seu trabalho e sua tomada de posição. Numa quadra em que governantes brasileiros buscam a todo custo amesquinhar nosso patrimônio cultural, a riqueza inesgotável das criações artísticas tem que seguir na luta com sua potência. Parabéns!

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        1. KARLA PAIVA says:

          Alexander, me desculpe não responder antes, não tinha visto seu cometário. Obrigada pelas palavras de apoio! Às vezes parece que estamos sozinhos, por mais vozes na arte para que possamos vencer todas as barreiras humanas. Abraços!

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